25 de maio de 2022 Comunicado De Imprensa

Organizações amici curiae da ADPF635 pedem rejeição do Plano de Redução da Letalidade Policial apresentado pelo estado do Rio de Janeiro após chacina no Complexo da Penha.

Baixe a petição em formato pdf aqui:

ADPF 635 – Petição – reitera rejeição plano – 24.05.22 – vf – Assinado

 

EXMO. SR. DR. MIN. EDSON FACHIN, RELATOR DA ADPF N° 635

 

 URGENTE

“No Rio, a matança substituiu a política de segurança pública” 

Era como se estivessem matando nossos filhos novamente

 

Partido Socialista Brasileiro – PSB, autor da presente ADPF, Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH, Educação e Cidadania de Afrodescendentes Carentes – Educafro, Justiça Global, Associação Direitos Humanos em Rede – Conectas Direitos Humanos, Associação Redes de Desenvolvimento da Maré – Redes da Maré, Instituto de Estudos da Religião – ISER, Movimento Mães de Manguinhos, Rede de Comunidades e Mo- vimentos contra a Violência, Coletivo Fala Akari, Coletivo Papo Reto, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Movimento Negro Unificado – MNU, Insti- tuto Alana, Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL, Instituto Bra- sileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ – LADIH, Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Ma- hin – NAJUP, e Instituto de Defesa da População Negra – IDPN, amici curiae já admitidos nos autos do processo em epígrafe, vêm, em conjunto, por seus advogados abaixo assinados, manifestar-se e requerer o que se segue.

Nas últimas semanas, as diversas corporações policiais vêm recrudescendo a política de morte e o uso da violência em território fluminense. São diversos episódios que, em sequência, desafiam a autoridade das decisões exaradas por esta eg. Suprema Corte, enquanto espalham o terror sobre a vida das populações de favela. É necessário que o STF estabeleça um limite à letalidade policial já, e tal resposta deve se iniciar pela imediata rejeição do Plano de Redução de Letalidade Policial apresentado pelo Estado do Rio de Janeiro.

Vejamos, a propósito, alguns dos lamentáveis eventos ocorridos recentemente.

No dia 11/05/2022, a Polícia Civil decidiu derrubar o memorial erigido em tri- buto aos mortos na operação que resultou na chacina mais letal da história do Rio de Janeiro – a CHACINA DO JACAREZINHO. A placa, organizada pela população local e por movimentos sociais, buscava simplesmente garantir a memória daquele episódio violento, para que não caísse no típico esquecimento relegado aos atos de violência produzidos pela política de segurança pública fluminense, especialmente quando vol- tados contra a população moradora de favela. Registre-se, aliás, as palavras inscritas no monumento:

“HOMENAGEM ÀS VÍTIMAS DA CHACINA DO JACAREZINHO! EM 06/05/2021, 27 MORADORES E UM SERVIDOR FORAM MORTOS, VÍTIMAS DA POLÍTICA GENOCIDA E RACISTA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, QUE FAZ DO JACAREZINHO UMA PRAÇA DE GUERRA, PARA COMBATER UM MERCADO VAREJISTA DE DROGAS QUE NUNCA VAI DEIXAR DE EXISTIR. NENHUMA MORTE DEVE SER ESQUECIDA. NENHUMA CHACINA DEVE SER NORMALIZADA”.

No entanto, apesar do pedido de paz, a Polícia Civil decidiu realizar uma in- vestida truculenta contra o memorial e contra o direito à memória de toda a comuni- dade, empregando, ao menos, oito viaturas, um caveirão e homens armados com fuzis – alguns até com o uniforme camuflado da CORE, unidade de operações especiais – para destruir a instalação. Segundo o órgão policial, a destruição da obra “levou em consideração a apologia ao tráfico de drogas, uma vez que os 27 homena- geados tinham envolvimento comprovado com atividades criminosas”.3 A justificativa também foi endossada pelo Governador do Estado, Cláudio Castro, que via “apologia ao crime” e “um tapa na cara da sociedade”, razão pela qual afirmou que, “enquanto eu estiver aqui, um memorial desse vai ser derrubado ou no mesmo dia ou no se- guinte”.4

Trata-se, evidentemente, de exercício de violência simbólica contra a popu- lação do Jacarezinho, cujos direitos à liberdade de expressão, dignidade, honra, imagem e memória foram gravemente desrespeitados, mediante atuação que sequer se encontra nas atribuições de um órgão como a Polícia Civil, que não cuida do policiamento ostensivo. Em uma demonstração explícita de racismo institucional, o Es- tado do Rio de Janeiro decide quais memórias devem ser preservadas e quais devem ser violadas e ultrajadas. O caveirão da Polícia Civil, utilizado como veículo de tração para destruir o memorial, descortina a violência dos processos de revitimização que o Estado impõe aos familiares e a toda a comunidade. Na síntese cunhada pela jornalista Flávia Oliveira, a destruição do memorial foi uma rechacina.

Mais do que isso, a atitude revela também a gravíssima tentativa de criminali- zação da comunidade e da sociedade civil que atuam nesta ADPF das Favelas. Se um dos grandes méritos desta ação foi trazer os clamores e reivindicações da popula- ção pobre e negra das favelas diretamente ao Supremo Tribunal Federal, a pos- tura da Polícia Civil demonstra a tentativa de silenciamento dessas vozes, que vêm se insurgindo contra a violência estatal e a letalidade policial, por meio de amea- ças de incriminação por fictícia “apologia ao tráfico de drogas”. Vale lembrar, mui- tas dessas vozes puderam ser ouvidas diretamente por este d. Relator na audiência pública realizada neste processo.

E, para confirmar a evidente tentativa de perseguição, até o momento a Polícia Civil sequer atendeu à demanda da sociedade civil sobre o acesso ao registro de ocor- rência que potencialmente criminaliza movimentos sociais, organizações e defensores de direitos humanos, a despeito das tentativas empreendidas por alguns destes amici curiae. A Justiça Global, por exemplo, já oficiou tanto a Coordenadoria de Recursos Especiais – CORE, quanto a 25a Delegacia de Polícia Civil, mas até agora não conse- guiu acesso aos documentos (docs. 1 e 2, anexos).

Ademais, na última quarta-feira, a Polícia Civil realizou nova operação em áreas de favela, desta vez no território de MANGUINHOS. A intervenção gerou intenso tiroteio, inclusive com o uso de helicóptero blindado, e deixou um morto e um ferido.5 A ação aterrorizou os moradores em geral e, em particular, as crianças de uma escola estadual da região, que precisaram se deitar no chão do corredor da unidade. Não bas- tasse a violência da incursão, houve também o silenciamento de protesto realizado pela população local, que denunciava o ferimento de um morador. Os policiais militares se valeram de bombas de efeito moral contra os manifestantes que interromperam a pas- sagem de ônibus na rua.

Na madrugada de hoje (24/05/2022), por seu turno, as forças de segurança protagonizaram mais um episódio macabro, dessa vez na VILA CRUZEIRO.6 Logo pela manhã, moradores foram acordados por intenso tiroteio. A operação realizada pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), Polícia Federal e Polícia Ro- doviária Federal contou com o uso de blindados e helicóptero. Além disso, a incursão deixou ao menos 22 mortos, fechou 19 escolas e 2 clínicas da família – e, apesar dos graves impactos, não conseguiu encontrar nenhum alvo dos mandados de pri- são expedidos.7 E é bem provável que o número de cadáveres seja ainda maior, con- forme se esclareçam os fatos ocorridos na data de hoje – segundo os relatos, moradores estão adentrando na mata para retirar corpos.

Segundo o relatório enviado ao Ministério Público, manifestamente contradi- tório, a operação era “emergencial” e visava “coletar dados de inteligência” para pren- der chefes do Comando Vermelho, cuja deflagração se justificou para reagir a supostos ataques iniciados por traficantes.9 No entanto, em afirmação francamente incompatível com o hipotético caráter emergencial da incursão, o próprio comando da Polícia Mili- tar informou que a “operação de inteligência” vinha sendo planejada há meses.10 Não bastasse o evidente desrespeito à cautelar referendada pelo Plenário desta Corte, a Polícia Militar do Rio de Janeiro ainda se valeu da oportunidade para respon- sabilizar a decisão do STF pela suposta “migração de criminosos ao estado”, em busca de “esconderijo”.11

Vale lembrar, em fevereiro a Vila Cruzeiro já havia sido o triste palco de outra operação policial realizada pela PM e pela PRF, que resultou em 8 mortos.12 Naquela oportunidade, 17 escolas ficaram fechadas e o principal alvo da operação não foi en- contrado. A reincidência desse tipo de operação violenta levou o Ministério Público Federal a instaurar procedimento investigatório criminal para apurar condutas na ope- ração policial na Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro.13 Por sua vez, o ouvidor da Defen- soria Pública do Rio de Janeiro, Guilherme Pimentel, afirmou que tais operações em favelas “colocam em risco a vida de toda a população, impedem o funcionamento de serviços públicos e do comércio, inviabilizam a saída de milhares de pessoas para trabalhar e estudar”. Além disso, defendeu que “essas operações jamais seriam tole- radas em bairros nobres da cidade. É preciso que também não sejam mais toleradas nas favelas do Rio de Janeiro”

Assim como tantos outros, tais casos ilustram o descompromisso do Estado do Rio de Janeiro com o cumprimento da decisão exarada por este eg. Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, como demonstrou o estudo do Grupo de Estudos dos Novos Ilega- lismos (GENI), da UFF, o ocorrido na Chacina do Jacarezinho e na operação da Vila Cruzeiro, ainda que surpreenda pela intensidade, “não é um episódio isolado, mas, sim, um desfecho frequente das operações policiais”.15 Segundo a pesquisa, no período de 2007 a 2021 houve 593 operações policiais que terminaram em chacinas, com um total de 2.374 mortos. E “o Jacarezinho se destaca no triste ranking da leta- lidade policial, como o bairro com o maior número de mortos em chacinas. Em média, a cada 10 operações realizadas no Jacarezinho ocorrem 7 mortes”. O relatório da pesquisa concluiu que:

Quanto ao local de execução, há claramente um predomínio das chaci- nas policiais na cidade do Rio de Janeiro, notadamente na Zona Norte, e de forma específica no bairro do Jacarezinho. A visibilidade pública dos bairros, assim como a composição e dinâmica do controle territorial ar- mado parecem ser as principais explicações para a distribuição espacial das chacinas no Rio de Janeiro;

Quanto às instituições envolvidas, a Polícia Militar apresenta maior par- ticipação no total de chacinas, mas a Polícia Civil é proporcionalmente mais letal. A presença de unidades especiais, particularmente o BOPE e a CORE, tornam as operações policiais mais propensas a resultarem em cha- cinas, além de muito mais letais;

Quanto às motivações das operações policiais que resultam em chacinas, clivagens sociais estereotipadas e operações emergenciais tendem a ser um fator de incremento de chacinas e de sua letalidade, ao passo que o respaldo judicial e a realização de operações planejadas tendem diminuir a ocorrên- cia de chacinas e torná-las menos letais.”16

Há, ainda, outros graves problemas. No caso do Chacina do Jacarezinho, di- versos procedimentos de investigação do MPRJ foram arquivados pela suposta ausên- cia de provas. Até o momento, foram arquivados inquéritos que tratavam de 24 das 28 mortes ocorridas na Chacina. Segundo o promotor encarregado pelas investigações, o uso de câmeras pelos agentes seria “essencial” para dar credibilidade ao trabalho policial e evitar a “briga de versões”, permitindo, além disso, a responsabilização de excessos.17 Contudo, embora houvesse a expectativa de que as unidades operacionais da Polícia Militar estivessem usando as oito mil câmeras até o final do primeiro se- mestre deste ano, o Governo do Estado do Rio de Janeiro informou que haverá atraso na implantação de tais medidas.

A verdade é que o estado de coisas inconstitucional da segurança pública do Rio de Janeiro vem se agravando, a despeito da decisão desta eg. Corte que o reconheceu e determinou a adoção de medidas para sua superação. A violência policial está ainda pior, e as polícias civil e militar agem cada vez mais em descompasso com os limites delimitados pelo Estado de Direito, se fiando em uma narrativa de “luta do bem contra o mal”.

Mas o Supremo Tribunal Federal – e em especial este d. relator – pode dar um basta e traçar a linha do inaceitável. Há 49 dias, pende de apreciação o pedido de rejeição do suposto Plano de Redução da Letalidade Policial, por se tratar de mera carta de intenções absolutamente genéricas, sem nenhum compromisso real com a redução da letalidade policial no estado.

Além de descumprir diversas determinações de natureza formal e material, o plano não se amolda aos pressupostos jurídico-filosóficos assentados no acórdão desta ADPF 635, ao se propor a reduzir ao máximo, apenas, “a vitimização de inocentes” (art. 3º, caput, seja do Decreto Estadual nº 47.802/2022, seja do Decreto Estadual nº 48.002/2022). E a postura dos agentes estatais um ano depois da Chacina do Ja- carezinho apenas confirma o descompromisso com qualquer mudança significa- tiva no rumo da condução da segurança pública fluminense, desafiando as deci- sões tomadas por este Supremo Tribunal Federal.

Tem-se fortalecido no estado uma dinâmica de exaltação de condutas de exe- cuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, legitimando-se previamente ações letais de agentes estatais sem que a vítima tenha tido a oportunidade de exercer o direito de defesa em processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal, a ví- tima seja executada antes do seu julgamento ou com algum vício processual; ou, ainda, embora respondendo a um processo legal, a vítima seja executada sem que lhe tenha sido atribuída uma pena capital legal.20 Reforça-se um recado de que, sem que nada seja feito, continuará vigorando a lógica do “bandido bom é bandido morto”, e não a da Constituição de 1988.

Por essas razões, é preciso que o Plano seja apreciado e não homologado tão logo quanto possível. Afinal, após sua rejeição, será necessário muito tempo até a formulação de um plano condizente, com a devida participação de entidades interes- sadas e da sociedade civil organizada.

E, neste caso, como se noticia a cada nova petição, o decurso do tempo vem quantificado em mortes, chacinas e violência sem fim. Não há tempo a perder!

Por todo o exposto, postulam novamente o Arguente e os amici curiae pela não homologação do plano de redução da letalidade policial contido no Decreto Estadual n° nº 48.002/2022, determinando-se a elaboração de novo plano sobre o tema, no prazo de 60 (sessenta) dias, com observância do que já decidiu o Plenário desta eg. Corte no âmbito da ADPF n° 635, a saber:

(a)        Antes da elaboração do novo plano, o governo fluminense deve pro- mover a oitiva da sociedade civil e, pelo menos, da DPERJ, do MPERJ e do Conselho Seccional da OAB/RJ. Também deve convocar audiência pú- blica, a ser sediada na capital do Estado do Rio de Janeiro, para a discussão da proposta. Deve prever, ainda, a participação da sociedade civil e das entidades mencionadas no monitoramento do plano, sendo vedada a sua supervisão por comissão integrada apenas por representantes do governo;

(b)       O novo plano deve se estruturar em torno da necessidade de se comba- ter o racismo estrutural. Também deve prever a elaboração de protocolos de uso proporcional e progressivo da força e de abordagem policial e busca pessoal para se evitar práticas de filtragem racial, bem como medidas de afastamento temporário, das funções de policiamento ostensivo, dos agen- tes de segurança envolvidos em mortes em operações policiais;

(c)        O novo plano deve conter providências concretas, indicadores quanti- tativos, prazos específicos, previsão de recursos necessários, e objetivos esperados;

(d)       O novo plano deve seguir os pressupostos jurídico-filosóficos da ADPF n° 635, sem priorizar a redução da vitimização de supostos inocentes e sem apostar apenas na aquisição de mais material bélico para as polícias; e

(e)        O novo plano deve determinar a instalação de equipamentos de GPS e de sistemas de gravação de áudio e vídeo em todas as viaturas policiais e nas fardas de todos os agentes de segurança, dando-se prioridade, neste primeiro momento, às comunidades mais pobres na implantação desses equipamentos.

Ademais, requer-se seja oficiado o Ministério Público do Estado do Rio de Ja- neiro, para que apure possível crime de abuso de autoridade, em razão da destruição do monumento às vítimas da Chacina do Jacarezinho e da espúria tentativa de crimi- nalização de moradores e das organizações da sociedade civil que o erigiram.

 

Pedem deferimento.

Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, 24 de maio de 2022.