Histórico! Brasil é responsabilizado pelo uso indevido da imunidade parlamentar como obstáculo à investigação e julgamento do feminicídio de Márcia Barbosa, conforme sentença da Corte Interamericana
- A Corte Interamericana determinou que as garantias judiciais e o acesso à justiça dos familiares de Márcia foram violados pela aplicação desproporcional e arbitrária da imunidade parlamentar.
- A Corte Interamericana reconheceu que existe um contexto de violência estrutural e generalizada contra mulheres no Brasil, no qual a sobreposição de opressões e discriminações torna alguns grupos de mulheres especialmente vulneráveis.
- O caso, litigado pelo CEJIL e pelo GAJOP, recebe uma sentença depois de 21 anos tramitando no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
San José / Washington / Rio de Janeiro / Recife, 24 de novembro de 2021. A Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão histórica no caso Márcia Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil, ao determinar pela primeira vez a responsabilidade do Estado brasileiro em um caso de feminicídio, além de estabelecer parâmetros sobre a compatibilidade das imunidades parlamentares com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconhecer que existe no país um contexto de violência de gênero estrutural e sistemática, agravado pela discriminação em razão de raça e condição social.
Márcia Barbosa de Souza era uma jovem estudante de 20 anos, negra e proveniente de uma família com escassos recursos econômicos do interior da Paraíba. Após migrar para João Pessoa, conheceu o Deputado Aércio Pereira, que lhe ofereceu emprego em uma fábrica de sapatos. Uma noite, após sair para se encontrar com Aércio, Márcia utilizou o celular do próprio deputado para ligar para amigas, que se preocuparam com o fato de ela parecer aflita durante toda a ligação. A família de Márcia foi alertada da situação, mas não possuía condições financeiras para ir até a capital encontrá-la. Márcia foi assassinada naquela noite, por asfixia. Na manhã seguinte, dia 18 de junho de 1998, uma testemunha avistou seu corpo sendo despejado do carro do Deputado, em um terreno baldio nos arredores de João Pessoa.
As investigações do crime apontaram Aércio como principal suspeito do assassinato. O cargo de Deputado, contudo, lhe concedia a prerrogativa de imunidade parlamentar. A Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba não autorizou que a ação penal oferecida pelo Ministério Público tivesse início, situação que perdurou por quase cinco anos. A demora no início do processo teve como consequência o falecimento de Aércio antes que se adotasse uma decisão transitada em julgado. A esse respeito, a Corte Interamericana determinou que as garantias judiciais e o acesso à justiça dos familiares de Márcia foram violados pela aplicação desproporcional e arbitrária da imunidade parlamentar formal por parte da Assembleia, que não cumpriu com os requisitos do devido processo legal e desconsiderou a gravidade do crime, bem como a ausência de qualquer relação deste com a atividade parlamentar.
A sentença estabelece parâmetros para que a aplicação da imunidade parlamentar formal seja feita de acordo com a Convenção Americana, entre eles, seguir um procedimento célere, com previsão legal e regras claras, cumprir as garantias do devido processo e incluir um teste de proporcionalidade estrito que leve em consideração a gravidade da acusação. Desse modo, a sentença representou uma oportunidade para a Corte criar jurisprudência para toda a região com relação à imunidade parlamentar e seus aspectos procedimentais.
No feminicídio de Márcia, estiveram presentes inúmeros estereótipos – de gênero, condição social e raça – que, somados, perpetuam a violência estrutural contra as mulheres. Esses estereótipos se manifestaram constantemente nos procedimentos de investigação e julgamento do crime. Em todos os momentos, funcionários do sistema de justiça e os advogados do acusado buscaram apontar supostos aspectos do comportamento e sexualidade de Márcia para construir a imagem de que ela teria merecido o ocorrido. Esses estereótipos causaram profundo sofrimento aos familiares e garantiram que o caso ficasse impune, pois indícios que apontavam a participação de outras pessoas no crime nunca foram investigados.
Diante disso, a Corte determinou a violação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), concluindo que a conduta discriminatória das autoridades contribuiu para enviar uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita.
Como forma de reparação pelas violações cometidas, a Corte determinou, para além de medidas individuais voltadas aos familiares de Márcia, medidas de não repetição, que têm como objetivo evitar que fatos semelhantes ocorram no futuro. Destacam-se a determinação de que o Brasil elabore um sistema nacional de recopilação de dados sobre a violência contra a mulher, com informações detalhadas sobre o perfil das vítimas, e a implementação de um plano de capacitação, com perspectiva de gênero e raça, para funcionários que atuam em investigações; e, ainda, que crie um protocolo nacional com diretrizes para a investigação de crimes de feminicídio.
Helena Rocha, diretora do programa para o Brasil e Cone Sul do CEJIL, organização que levou o caso ao Sistema Interamericano juntamente com o GAJOP, expressou: “A sentença é histórica ao reconhecer o caráter estrutural e sistemático da violência de gênero no Brasil e as suas interseccionalidades, o que demanda um dever agravado do Estado de garantir o acesso à justiça eficaz e sem discriminações, ou seja, com perspectiva de gênero e afastando estereótipos negativos. Finalmente, é um alento à família de Márcia que lutou durante anos para obter justiça em relação à sua morte e à sua memória.”
Paralelamente, Rodrigo Deodato do GAJOP declarou: “O caso Márcia Barbosa representa para o âmbito internacional e local, em todos os níveis, a luta pelo fim da violação, ainda tão presente, dos Direitos das Mulheres, sobretudo negras e sertanejas como Márcia. Que a sentença emitida pela Honorável Corte IDH seja um marco na sua jurisprudência dedicada ao Brasil e represente para a família de Márcia Barbosa a tão almejada justiça.”