14 de dezembro de 2022 Comunicado De Imprensa

Expressamos preocupação com possível fim da CEMDP e ameaça à justiça e verdade no Brasil

Os familiares das pessoas desaparecidas da Guerrilha do Araguaia, juntamente com as organizações que as representam perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) – o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) e a Comissão de Familiares de Mortes e Desaparecidos Políticos de São Paulo (CFMDP-SP) – vêm expressar preocupação com a notícia do encerramento das atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Político (CEMDP), criada pela Lei nº 9.140/95.

Desde sua criação, a CEMDP tem sido o órgão estatal responsável pelos “esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas”, conforme sua atribuição legal. Para tanto, participou e organizou das diversas operações de tentativas de localização de pessoas desaparecidas ao longo dos anos, por iniciativa própria ou dos Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) e Grupo de Trabalho Araguaia (GTA).

O relatório final que será apresentado em reunião extraordinária agendada para o dia 15 de dezembro de 2022 considera que foram concluídas suas atividades ao prestar contas do que foi feito até o presente, sem estabelecer mecanismos para a continuidade das buscas e identificação dos restos mortais que estão sob sua guarda. O referido relatório tampouco apresenta qualquer argumento que resulte na conclusão de esgotamento das possibilidades de continuidade de buscas e identificação de pessoas desaparecidas.

A ausência de previsão expressa sobre como o Estado brasileiro dará continuidade ao seu dever de garantir verdade e justiça em relação às pessoas desparecidas durante a ditadura militar coloca em risco obrigações internacionais e nacionais e viola a própria Lei nº 9.140/95. A este respeito, o Ministério Público Federal destacou que a extinção da CEMDP é “prematura, considerando a existência de casos pendentes, que demandam providências administrativas, como o reconhecimento de vítimas, busca de corpos/restos mortais e registros de óbito, os quais ainda não foram objeto de requerimentos individuais, tais como os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério Ricardo Albuquerque”. No mesmo sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos expressou preocupação com a notícia.

A Corte IDH determinou em sua sentença no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, em 2010, que o Estado brasileiro empreendesse todos os esforços para a determinação do paradeiro das pessoas desaparecidas, a identificação de seus restos mortais e a entrega dos mesmos aos seus familiares. Adicionalmente, a Justiça Federal determinou em sentença emitida em 2003 que fosse informado o local de sepultamento dos restos mortais dos desaparecidos, o traslado das ossadas e o seu sepultamento em local a ser indicado pelos familiares.

No processo de supervisão do cumprimento da sentença perante a Corte IDH, o Estado brasileiro vem reiteradamente afirmando que já adotou todas as medidas necessárias, não restando mais obrigação do Estado de seguir atuando nas buscas e procedimentos de localização e identificação de restos mortais. Contudo, é importante destacar que até a presente data só duas vítimas desaparecidas foram localizadas e identificadas, ambas por iniciativas de familiares.

Ao contrário do afirmado pelo Estado, as representantes das vítimas têm destacado perante a Corte IDH a necessidade de continuidade do monitoramento desta medida, seguindo os parâmetros estabelecidos pela Corte de participação dos familiares e ausência dos órgãos repressores, em especial das Forças Armadas. Esses dois pontos foram ressaltados pela ex-Presidente da Corte Interamericana em audiência de supervisão realizada em junho do ano passado.

A este respeito, a Presidente afirmou grande preocupação em relação à participação das Forças Armadas nas iniciativas de buscas e identificação de restos mortais, pois esta limita a participação dos familiares e corrobora para a impunidade em relação aos crimes. Também destacou a necessidade de multiplicação dos esforços para o cumprimento da sentença, considerando o decorrer do tempo.

Sobre as iniciativas apresentadas pelo Estado brasileiro, as representantes destacam que a extinção do Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) consistiu em um retrocesso no âmbito do cumprimento das sentenças, tanto da Corte Interamericana quanto da Justiça Federal. Ainda que a atuação do GTA fosse eivada de falhas estruturais e que o Grupo nunca tenha apresentado resultados concretos, era a única medida adotada pelo Estado voltada à determinação do paradeiro das vítimas. Atualmente, não há qualquer iniciativa voltada à localização das vítimas desde o ano de 2018.

Assim, o Estado brasileiro segue em desacato às ordens judiciais, o que se agrava pelo discurso de negacionismo e revisionismo histórico adotado por autoridades do Executivo federal, que ao negar as diversas violações a direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar, revitimiza os familiares das pessoas desaparecidas e priva a sociedade brasileira do direito à verdade. Agora, esse cenário é piorado com o risco do encerramento das atividades da CEMDP e a ausência de qualquer institucionalidade para seguir com a localização de pessoas desaparecidas.

Portanto, além de expressar nossa preocupação, requeremos a suspensão da decisão sobre o encerramento das atividades da CEMDP até que haja um encaminhamento adequado para dar respostas às determinações da Corte IDH e da Justiça Federal. Neste sentido, reiteramos a necessidade de que qualquer iniciativa relacionada ao cumprimento da sentença obedeça aos parâmetros internacionais sobre localização de pessoas desaparecidas e identificação das ossadas sob tutela do Estado.