Caso sobre torturas, execução sumária e refúgio no contexto da ditadura militar brasileira chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos
Rio de Janeiro, 2 de junho de 2022
A principal instância em direitos humanos no continente julgará o Estado brasileiro em relação à detenção arbitrária e tortura de uma mulher grávida de seis meses, à detenção arbitrária, tortura e execução sumária e extrajudicial de seu companheiro e ao exílio forçado da mulher e sua filha no contexto da ditadura militar brasileira.
Eduardo Collen Leite, também conhecido como Bacuri, foi um importante militante político contra a ditadura. Ele foi preso em 21 de agosto de 1970 e ficou sob a custódia do Estado por mais de 100 dias, período em que sofreu inúmeras e incessantes torturas, até sua morte, falsamente noticiada como decorrente de um tiroteio.
Denise Peres Crispim, militante política e companheira de Bacuri, foi presa em 23 de julho de 1970, quando estava grávida de seis meses. Durante sua prisão, foi submetida a diversas torturas e deu à luz ainda sob custódia estatal e sob forte escolta, em um Hospital e Maternidade de propriedade de um militar. Após o nascimento de sua filha, Denise teve autorização para sair das instalações prisionais, mas ainda tinha a obrigação de se apresentar periodicamente aos militares e continuava sofrendo perseguições. Diante disso, solicitou asilo diplomático ao Chile cerca de 9 meses após sua liberação, e ficou retida com sua filha na embaixada do país no Brasil por 11 meses. Após o golpe de Estado no Chile, Denise solicitou refúgio na Itália, onde vive com sua família até hoje. Sua filha só tomou conhecimento de toda a sua história na adolescência e apenas em 2009 logrou incluir o nome de seu pai, Eduardo, em sua certidão de nascimento.
Esses fatos, iniciados há cerca de 50 anos, produzem efeitos nas vítimas até os dias atuais e nunca foram adequadamente investigados e sancionados, visto que o Brasil segue aplicando a Lei de Anistia (Lei 6.683/79) e o instituto da prescrição da pretensão punitiva como instrumentos de perpetuação da impunidade. Tampouco houve por parte do Estado uma reparação integral dos danos sofridos.
A chegada do caso à Corte Interamericana representa uma grande oportunidade para as vítimas e para a sociedade brasileira em geral de ampliar o debate sobre o direito à verdade, memória e justiça em relação aos crimes cometidos na ditadura brasileira. Especialmente no atual contexto de revisionismo histórico e negacionismo, que impacta diretamente os direitos das vítimas e promove o descumprimento das decisões anteriores da Corte Interamericana sobre o tema, além do desmantelamento das políticas públicas de memória e verdade.
Com o julgamento do caso, espera-se que seja reiterada a necessidade de se investigar graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade ocorridos durante a ditadura militar brasileira e de se adotar um enfoque de gênero na análise de violações em contextos de justiça de transição, incluindo especificidades próprias no caso de mulheres grávidas. Espera-se, ainda, que a Corte se pronuncie sobre os danos transgeracionais que violações desse tipo acarretam e sobre o impacto do exílio no contexto de períodos ditatoriais.
A pedido do CEJIL, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decidiu encaminhar o caso de Denise Peres Crispim, Eduardo Collen Leite e outros à Corte Interamericana de Direitos Humanos, face à ausência de uma resposta efetiva do Estado brasileiro para cumprir as recomendações formuladas pela CIDH após o órgão reconhecer as violações dos direitos das vítimas.
Diante do iminente julgamento, Denise Peres Crispim afirmou que:
“A ida do processo à Corte Interamericana significa a possibilidade de haver justiça para o Eduardo, o reconhecimento de que ele foi uma pessoa que lutou pela democracia no Brasil e foi vítima de uma das maiores atrocidades cometidas pelo Estado em sua repressão aos militantes políticos.
Uma sentença da Corte em que haja a declaração de que o Estado foi responsável pela morte de Eduardo vai tirar um peso das minhas costas e impactar positivamente a relação de toda a minha família, profundamente afetada pelo caso e pela denegação de justiça. Eu e minha filha, em meu ventre, também fomos vítimas de uma repressão violenta e de tortura, e é importante que toda a família possa entender exatamente o que aconteceu e saber que enfim se obteve algum tipo de justiça. A família de Eduardo também sofreu muito após a morte, visto que enfrentaram anos de terror psicológico, temendo que as perseguições continuassem.
Tal sentença teria um valor extraordinário, ainda, porque teria repercussão internacional. É fundamental que todos os países da América Latina saibam que a repressão durante a ditadura no Brasil não foi branda, mas sim muito violenta. Por fim, espero que o caso produza também um impacto nos maus tratos que ainda hoje as mulheres encarceradas sofrem. Meu desejo é que, no futuro, todas as mulheres tenham o direito a uma gravidez tranquila, sem sofrer humilhações e torturas de qualquer espécie.”
Nos próximos meses, terá início a fase escrita dos procedimentos, após a qual a Corte convocará uma audiência pública para escutar testemunhas e peritos, além das alegações finais das partes.