A Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou uma audiência pública sobre um caso de tortura, execução extrajudicial e exílio durante a ditadura militar brasileira
- A Corte ouviu Denise Peres Crispim, vítima do caso, especialistas e a representação das vítimas, o Estado brasileiro e a CIDH.
- A CIDH encaminhou o caso à Corte devido ao não cumprimento pelo Estado brasileiro das recomendações feitas pelo órgão.
- Esse é o terceiro caso relacionado a fatos ocorridos durante a ditadura brasileira a chegar à Corte IDH.
Costa Rica, 05 de julho de 2024. – No âmbito do 168º período de Sessões Ordinárias, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou uma audiência pública na qual julgou o Estado brasileiro pela impunidade, ineficácia das medidas de reparação e violação da integridade pessoal por crimes contra a humanidade ocorridos durante a ditadura militar brasileira. O caso se refere à detenção e tortura de Denise Crispim e Eduardo Leite, também conhecido como Bacuri, e à violação da identidade da filha do casal, Eduarda Leite.
O Estado brasileiro já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana em relação a crimes cometidos durante a ditadura, nos casos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog e dos desaparecimentos forçados na Guerrilha do Araguaia, e estabeleceu que a interpretação que o Brasil faz de sua lei de anistia é incompatível com a Convenção Americana, no que se refere a esse tipo de crime. No entanto, a lei de anistia continua a ser o principal obstáculo para que as vítimas de graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura brasileira obtenham justiça.
Esse é o primeiro caso da ditadura brasileira que permitirá que a Corte analise as obrigações do Estado em relação aos direitos à verdade, à justiça e à reparação pelos crimes contra a humanidade ocorridos durante a ditadura militar a partir de uma perspectiva de gênero. Também permitirá que a Corte analise o impacto que a falta de reparação integral pode ter em todo o ambiente familiar por gerações.
Durante a audiência, a Corte ouviu os depoimentos de Denise Peres Crispim, uma vítima do caso que foi detida e torturada enquanto estava grávida e que deu à luz em cativeiro; testemunhas especializadas propostas pelos representantes das vítimas e pelo Estado brasileiro; representantes das vítimas e do Estado; bem como representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em seu depoimento, Denise relembrou o nascimento de sua filha Eduarda: “Eu tinha medo de dar à luz à minha filha nessas condições e sem saber o que aconteceria. Porque eu tinha certeza de que eles iriam me matar. Eles não me contaram nada sobre a morte do Bacuri. Somente a imprensa disse que ele morreu em um tiroteio. Eu não acreditei nessa versão. Suas últimas palavras foram contundentes sobre seu pedido à Corte mais de 50 anos após os eventos: “Eu quero justiça. Não só quero, eu preciso de justiça. Vivi praticamente 54 anos esperando por essa justiça e não há outra alternativa. Eu tinha medo de não chegar a este tribunal, de não chegar viva, e aqui estou”.
Helena Rocha, codiretora do Programa para o Brasil e Cone Sul do CEJIL, destacou a necessidade de uma perspectiva de gênero nas reparações: “Essa violência confirma as conclusões de que a tortura contra as mulheres durante a ditadura reflete como a própria condição de ser mulher foi utilizada como estratégia para produzir dor e sofrimento nesses corpos”. Lucas Arnaud, advogado do CEJIL, destacou o impacto da passagem do tempo no caso e suas repercussões no acesso das vítimas à justiça: “Os poucos agentes da ditadura que poderiam ser responsabilizados ou contribuírem para a construção da verdade estão morrendo, e o acesso das vítimas à justiça está diminuindo”.
Por sua vez, Gisela De León, Diretora Jurídica do CEJIL, destacou o pedido à Corte IDH: “Até hoje, 50 anos após os fatos, a detenção ilegal e a tortura de Eduardo e Denise, bem como a execução de Eduardo, continuam impunes. Solicitamos a esta Corte que ordene ao Estado brasileiro que cumpra o mais profundo desejo de Denise Crispim: investigar os graves fatos ocorridos contra ela e Eduardo e punir os responsáveis”.
Contexto
Eduardo Leite, também conhecido como Bacuri, foi um importante ativista político contra a ditadura. Foi preso em 21 de agosto de 1970 e permaneceu sob custódia do Estado por mais de 100 dias, período em que sofreu inúmeras e incessantes torturas, até sua morte. Sua esposa, Denise Peres Crispim, também ativista política, foi presa em 23 de julho de 1970, quando estava grávida de seis meses. Durante sua detenção, ela foi submetida a várias torturas e deu à luz, ainda sob custódia do Estado e sob forte escolta, em um hospital de propriedade de um militar. Após o nascimento de sua filha Eduarda, ela foi autorizada a deixar as dependências da prisão, mas continuou a sofrer perseguição, motivo pelo qual teve de buscar asilo diplomático no Chile e, depois, na Itália.
A pedido do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) decidiu encaminhar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na ausência de uma resposta efetiva do Estado brasileiro. A Comissão considerou que o Estado brasileiro não investigou os fatos de forma diligente, uma vez que a justiça comum arquivou a denúncia de tortura e execução de Eduardo Leite porque foram aplicados os prazos prescricionais e uma interpretação da lei de anistia (Lei nº 6.683/79) incompatível com as obrigações do Estado nessa matéria e que se refletiram na impunidade do caso.
Revisar a audiência:
Audiência Pública de Collen Leite et al. v. Brasil – Parte 1
Audiência Pública de Collen Leite et al. v. Brasil – Parte 2