18 de junho de 2024 Blog By

26 anos do feminicídio que levou ao reconhecimento, pela primeira vez, da responsabilidade do Estado brasileiro pela falta de perspectiva de gênero na investigação e julgamento

  • Em novembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu que existe um contexto de violência estrutural e generalizada contra mulheres no Brasil, no qual a sobreposição de opressões e discriminações torna alguns grupos de mulheres especialmente vulneráveis.
  • O caso foi litigado pelo CEJIL (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional) e pelo GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares).

 

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2024. – Márcia Barbosa de Souza era uma estudante de 20 anos quando foi assassinada. Márcia, do interior da Paraíba, foi a João Pessoa em busca de emprego para ajudar sua família. Na noite de 17 de junho de 1998, Márcia saiu para se encontrar com o deputado Aércio Pereira. Ela usou o telefone celular do deputado para ligar para seus amigos, que ficaram preocupados porque ela parecia angustiada durante a ligação. Foram esses amigos que alertaram a família de Márcia, que não tinha condições financeiras de ir à capital para procurá-la. Márcia foi morta naquela noite, por asfixia. Na manhã seguinte, uma testemunha viu seu corpo ser jogado para fora de um carro do deputado, em um terreno baldio na periferia de João Pessoa.

As investigações sobre o crime apontaram o deputado Aércio Pereira como o principal suspeito do assassinato. Entretanto, como deputado, ele tinha imunidade parlamentar, de modo que a ação criminal contra ele solicitada pelo Ministério Público só poderia ser iniciada com a autorização da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Esta, contudo, recusou-se a autorizar em duas ocasiões. Assim, o processo criminal pelo assassinato de Márcia só teve início em março de 2003, quase cinco anos após os fatos, quando Pereira deixou o cargo de deputado após não conseguir ser reeleito. Em setembro de 2007, ele foi condenado a 16 anos de prisão pelo assassinato e ocultação do corpo de Márcia, mas nunca cumpriu pena de prisão, vindo a falecer alguns meses depois quando aguardava em liberdade o julgamento de recursos.

O assassinato de Márcia Barbosa ocorreu em um contexto geral de violência de gênero contra a mulher no Brasil, acompanhado de impunidade estrutural para tais atos. Esse contexto se perpetua até a atualidade apesar de avanços normativos como a promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) que tem como objetivo o enfrentamento e a prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher, e a tipificação do feminicídio como uma das formas qualificadas de homicídio em 2015.

O CEJIL e o GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) levaram o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em novembro de 2021, a Corte prolatou uma decisão histórica determinando, pela primeira vez, a responsabilidade do Estado brasileiro em um caso de feminicídio, além de estabelecer parâmetros sobre a compatibilidade das imunidades parlamentares com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconhecer que existe no país um contexto de violência de gênero estrutural e sistemática, agravado pela discriminação em razão de raça e condição social.

A Corte considerou a existência de uma cultura de tolerância à violência contra a mulher e pediu a implementação de medidas de não repetição, como um protocolo nacional para investigação de feminicídios.

A sentença estabelece parâmetros para que a aplicação da imunidade parlamentar formal seja feita de acordo com a Convenção Americana, entre eles, seguir um procedimento célere, com previsão legal e regras claras, cumprir as garantias do devido processo e incluir um teste de proporcionalidade estrito que leve em consideração a gravidade da acusação. Desse modo, a sentença representou uma oportunidade para a Corte criar jurisprudência para toda a região com relação à imunidade parlamentar e seus aspectos procedimentais.

No feminicídio de Márcia, estiveram presentes inúmeros estereótipos – de gênero, condição social e raça – que, somados, perpetuam a violência estrutural contra as mulheres. Esses estereótipos se manifestaram constantemente nos procedimentos de investigação e julgamento do crime. Em todos os momentos, funcionários do sistema de justiça e os advogados do acusado buscaram apontar supostos aspectos do comportamento e sexualidade de Márcia para construir a imagem de que ela teria merecido o ocorrido. Esses estereótipos causaram profundo sofrimento aos familiares e garantiram que o caso ficasse impune, pois indícios que apontavam a participação de outras pessoas no crime nunca foram investigados.

Diante disso, a Corte determinou a violação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), concluindo que a conduta discriminatória das autoridades contribuiu para enviar uma mensagem segundo a qual a violência contra as mulheres pode ser tolerada e aceita.

Como forma de reparação pelas violações cometidas, a Corte determinou, para além de medidas individuais voltadas aos familiares de Márcia, medidas de não repetição, que têm como objetivo evitar que fatos semelhantes ocorram no futuro. Destacam-se a determinação de que o Brasil elabore um sistema nacional de recopilação de dados sobre a violência contra a mulher, com informações detalhadas sobre o perfil das vítimas, e a implementação de um plano de capacitação, com perspectiva de gênero e raça, para funcionários que atuam em investigações; e, ainda, o supracitado protocolo nacional com diretrizes para a investigação de crimes de feminicídio.